sábado, 5 de abril de 2014

O Auto da Compadecida

Capa d'O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, de 1955.
"Não sei, só sei que foi assim!" - Baseada, ou copiada, por um cordel chamado O Testamento do Cachorro, que conta a história de um inglês que enterra o seu cão, membro ilustríssimo da família, e que pede ao padre para rezar pela alma do animal em latim, sendo que este só aceita quando o inglês fala de "valores" no "testamento", tanto para o padre quanto para o bispo: "Que animal inteligente! Que sentimento nobre!"; a peça O Auto da Compadecida é um símbolo da cultura nordestina, ou melhor, é um conjunto de símbolos caracterizado desde a fala até o comportamento regional.
 
Capa do Livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, de 1881. 
Como já falamos da origem, vamos à estrutura: bem, a peça tem uma formação "clássica", três atos, mas a presença de outro membro tradicional das peças, "O Palhaço", o narrador-presente da história, quebra não só a divisão dos atos, acelerando o ritmo dos acontecimentos, mas quebra a superfície teatral, a famosa quarta parede. Pois, em diversos momentos, os personagens "tiram as máscaras" e os próprios atores agem em cena, modificando até o cenário, que, para mim, é algo circense e até revolucionário,  revolucionário tal como Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra em que o autor-personagem "conversa" com o leitor.


Além da tenacidade estrutural, da representação nordestina "pura", a peça é altamente cômica, ela se apropria do linguajar matuto, da repetição de falas, de visões muito inesperadas sobre certas ações, além de ter traços medievais, e como Ariano é prepulsor do Movimento Armorial, também não poderia faltar alguma coisa disso. Ariano se mancomuna com o teatro religioso medieval, no qual o gênero mais utilizado era o "auto", porém as discussões filosóficas feitas por João Grilo e Manuel (Jesus) vão muito contra as antigas encenações, e imposições, da Igreja Católica.

Representação do Teatro Medieval.
Um auto é uma peça teatral que mostra um personagem que erra, tragicamente ou dramaticamente, e que acaba sendo salvo por alguma força divina, que o redime ou o ressuscita, dando-lhe mais uma chance. À Manuel, João Grilo chega a perguntar coisas do tipo: "Em que dia vai acontecer sua segunda ida ao mundo?" e "O Senhor é protestante?", criando grandes reflexões a cerca do teor religioso sobre a figura de Jesus e da própria fé cristã.

Cena do Filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, de 2000.
O filme produzido é muito fiel a peça, claro que há personagens que estão na peça e que não estão no filme, tal como vice-versa, pois o filme é um compilado de várias outras obras de Ariano. Falo do filme, pois é uma das poucas maneiras que o apreciador tem contato com a obra, isso porque, paradoxalmente, em qualquer grande livraria de Recife, aonde Ariano mora e são publicados primeiramente os seus textos, é dificílimo encontrar os escritos de Ariano, e ainda mais raro encontrá-los na internet.

O elemento circense permeia toda a obra de Ariano.
Por mim, desnecessário falar das mentiradas de Chicó, das cavalices de Antônio Moraes, das desculpas de Padre João, da safadeza da Mulher do Padeiro, e, dentre todos os outros, o mais importante, das embrulhadas de João Grilo... Já que são personagens lendários, feitos a partir caricaturas d'outros e de nós mesmo, sendo uma fonte inesgotável, um espelho do qual não nos cansamos de refletir...


Agora, com mais tantas prezepadas, e muito mais riqueza, vamos para O Santo e a Porca!


Victor Mauricio Borba


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