Capa d'O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, de 1955. |
"Não sei, só sei que foi assim!" - Baseada, ou copiada, por um cordel chamado O Testamento do Cachorro, que
conta a história de um inglês que enterra o seu cão, membro ilustríssimo da
família, e que pede ao padre para rezar pela alma do animal em latim, sendo que
este só aceita quando o inglês fala de "valores" no
"testamento", tanto para o padre quanto para o bispo: "Que animal inteligente! Que
sentimento nobre!"; a peça O
Auto da Compadecida é um
símbolo da cultura nordestina, ou melhor, é um conjunto de símbolos caracterizado desde a fala até o comportamento regional.
Como já falamos da origem, vamos à
estrutura: bem, a peça tem uma formação "clássica", três atos, mas a
presença de outro membro tradicional das peças, "O Palhaço", o
narrador-presente da história, quebra não só a divisão dos atos, acelerando o
ritmo dos acontecimentos, mas quebra a superfície teatral, a famosa quarta
parede. Pois, em diversos momentos, os personagens "tiram as
máscaras" e os próprios atores agem em cena, modificando até o cenário,
que, para mim, é algo circense e até revolucionário, revolucionário tal
como Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra em que o autor-personagem "conversa" com o
leitor.
Além da tenacidade estrutural, da
representação nordestina "pura", a peça é altamente cômica, ela se
apropria do linguajar matuto, da repetição de falas, de visões muito inesperadas
sobre certas ações, além de ter traços medievais, e como Ariano é prepulsor do
Movimento Armorial, também não poderia faltar alguma coisa disso. Ariano se mancomuna com
o teatro religioso medieval, no qual o gênero mais utilizado era o "auto", porém as discussões filosóficas feitas por João Grilo e Manuel
(Jesus) vão muito contra as antigas encenações, e imposições, da Igreja Católica.
Representação do Teatro Medieval. |
Um auto é uma peça teatral que mostra um
personagem que erra, tragicamente ou dramaticamente, e que acaba sendo salvo
por alguma força divina, que o redime ou o ressuscita, dando-lhe mais uma
chance. À Manuel, João Grilo chega a perguntar coisas do tipo: "Em que dia
vai acontecer sua segunda ida ao mundo?" e "O Senhor é
protestante?", criando grandes reflexões a cerca do teor religioso sobre a
figura de Jesus e da própria fé cristã.
Cena do Filme O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, de 2000. |
O filme produzido é muito fiel a peça,
claro que há personagens que estão na peça e que não estão no filme, tal como
vice-versa, pois o filme é um compilado de várias outras obras de Ariano. Falo
do filme, pois é uma das poucas maneiras que o apreciador tem contato com a
obra, isso porque, paradoxalmente, em qualquer grande livraria de Recife,
aonde Ariano mora e são publicados primeiramente os seus textos, é dificílimo
encontrar os escritos de Ariano, e ainda mais raro encontrá-los na internet.
Por mim, desnecessário falar das
mentiradas de Chicó, das cavalices de Antônio Moraes, das desculpas de Padre
João, da safadeza da Mulher do Padeiro, e, dentre todos os outros, o mais
importante, das embrulhadas de João Grilo... Já que são personagens lendários,
feitos a partir caricaturas d'outros e de nós mesmo, sendo uma fonte
inesgotável, um espelho do qual não nos cansamos de refletir...
Victor Mauricio Borba